Publicado em:
2/1/2023
Hoje faço um convite para um texto diferente. A poesia tem o papel de materializar sentimentos e pensamentos coletivos de forma mais certeira do que as meras palavras de um texto corrido, e, em vez de dar lugar aos clichês, recorro aos mestres para trazerem as análises do recomeço. Começando com um excerto de “Cortar o tempo”, de Roberto Pompeu de Toledo:
Quem teve a idéia de cortar o tempo em fatias, a que se deu o nome de ano, foi um indivíduo genial.
Industrializou a esperança fazendo-a funcionar no limite da exaustão.
Doze meses dão para qualquer ser humano se cansar e entregar os pontos.
Aí entra o milagre da renovação e tudo começa outra vez
com outro número e outra vontade de acreditar que daqui para adiante vai ser diferente…
Pular as sete ondinhas, vestir branco, comer lentilha, fogos de artifício… Seja qual for a sua tradição para celebrar o novo ano, uma coisa é comum entre culturas e tradições: a celebração do marco temporal. Um novo começo faz-se necessário na estrutura social. Comprovado pela ciência do comportamento, momentos de novo começo servem para “renovar as energias” e aumentar a nossa motivação. Sejam eles coletivos (como o início de uma nova semana, mês, estação - ou o maior de todos: a entrada de um novo ano) ou individuais, como aniversários, mudança de casa e começo em um novo trabalho.
Um experimento evidenciou este fator comparando a adesão a um plano alimentar de pessoas que utilizavam dois tipos de calendários diferentes: em um dos grupos, utilizavam calendários semanais; em outro, o calendário trazia o dia do mês. Os pesquisadores observaram que os participantes tinham uma probabilidade maior de começar no primeiro dia do mês se utilizavam o calendário mensal, e às segundas-feiras quando utilizavam o semanal.
Talvez você mesmo(a) tenha feito promessas em 2022 de mudanças na sua vida. Talvez elas tenham ficado no papel, talvez tenham sido implementadas - ou ao menos iniciadas; quem sabe até você aqui na Liti faça parte disso. Resta o questionamento do que causa a mudança e, já que falamos sempre de receitas, trago aqui a Receita de Ano Novo, do grande Carlos Drummond de Andrade:
Para você ganhar belíssimo Ano Novo
cor do arco-íris, ou da cor da sua paz,
Ano Novo sem comparação com todo o tempo já vivido
(mal vivido talvez ou sem sentido)
para você ganhar um ano
não apenas pintado de novo, remendado às carreiras,
mas novo nas sementinhas do vir-a-ser;
novo
até no coração das coisas menos percebidas
(a começar pelo seu interior)
novo, espontâneo, que de tão perfeito nem se nota,
mas com ele se come, se passeia,
se ama, se compreende, se trabalha,
você não precisa beber champanha ou qualquer outra birita,
não precisa expedir nem receber mensagens
(planta recebe mensagens?
passa telegramas?)
Não precisa
fazer lista de boas intenções
para arquivá-las na gaveta.
Não precisa chorar arrependido
pelas besteiras consumadas
nem parvamente acreditar
que por decreto de esperança
a partir de janeiro as coisas mudem
e seja tudo claridade, recompensa,
justiça entre os homens e as nações,
liberdade com cheiro e gosto de pão matinal,
direitos respeitados, começando
pelo direito augusto de viver.
Para ganhar um Ano Novo
que mereça este nome,
você, meu caro, tem de merecê-lo,
tem de fazê-lo novo, eu sei que não é fácil,
mas tente, experimente, consciente.
É dentro de você que o Ano Novo
cochila e espera desde sempre.
Talvez a parte mais importante de qualquer mudança é entender que ela vai ocorrer no momento em que estivermos prontos para ela, e que isso é um processo muito particular de cada um. Quando olhamos para a teoria da mudança de comportamento, existem estágios da mudança. Saímos de fases de pré contemplação, na qual nem percebemos que algo é um problema, para a contemplação, em que passamos a pensar na possível mudança, para a preparação, o momento em que começamos a fazer planos para agir e dar alguns passos nessa direção, até enfim chegar na ação. Quem sabe o ano novo vem como empurrão amigo para nos fazer passar de estágio e perceber que está na hora de mudar. E você, quer mudar algo em 2023?
Quando falamos em mudanças, o desafio não fica restrito ao início de um novo comportamento, mas envolve também manter isso de forma constante no ano. Recorro a Fernando Pessoa para comentar sobre o assunto:
O primeiro passo é que custa. O segundo também. Cada um de seu modo. O primeiro custa porque é difícil começar. Custa o segundo porque continuar é difícil. Analisando bem, continuar é mais propriamente difícil do que iniciar. As qualidades para iniciar podem não ser mais do que audácia e convicção. Ora para continuar têm de ser, pelo menos, com a mesma convicção, persistência, sabedoria e tenacidade, para não falar em honestidade e cultura. Um acto de força é difícil; mas ninguém negará que um de administração ainda é mais.
Por isso, mais importante do que usar a força do novo ano para dar o primeiro passo neste janeiro, pense em como implementar isso de uma forma a ser mantida. Como criar estruturas que não dependam somente da alta motivação, mas que façam o novo comportamento fácil e fluido na sua vida, mesmo quando você não estiver pensando nele? Comprometa-se a treinar com outras pessoas para reservar sempre um horário fixo na agenda; faça compras recorrentes de comidas saudáveis para elas chegarem na sua casa mesmo quando você não tem tempo de lembrar disso; fixe os novos comportamentos sempre no mesmo momento, para torná-los hábitos. Contrariando Pessoa (me perdoe!), o ato de administração é fácil quando você tem sistemas que o permitem sem demandar tanto do seu controle e atenção. Ainda bem que as ciências comportamentais existem para montá-los!